No século XVII, Niels Steensen (1638-1696), também conhecido como Nicolas Steno, estabeleceu as bases do que se tornaria a estratigrafia. Steno, através da observação de camadas sedimentares, enunciou princípios simples que foram fundamentais para a organização do registo geológico. E do próprio tempo. O primeiro princípio é o Princípio da Horizontalidade Original, que afirma que todas as camadas sedimentares são depositadas horizontalmente. Este é um resultado direto da ação da gravidade. As partículas caiem na direção do centro da Terra e os estratos depositam-se ortogonalmente ao sentido da força da gravidade. Se uma camada não é horizontal, é porque um processo posterior atuou sobre ela (por exemplo, um evento que levou à sua deformação). O segundo princípio é o Princípio da Continuidade Lateral Original, que afirma que uma camada se estende em todas as direções até desvanecer nos limites da bacia. Se uma camada é abruptamente interrompida, é porque um evento/processo subsequente atuou sobre ela, como a formação de uma falha, por exemplo. O terceiro, e mais importante, é o Princípio da Sobreposição, que afirma que numa sequência sedimentar (uma sequência de vários estratos), a camada mais antiga está na base e as camadas suprajacentes tornam-se cada vez mais jovens até ao topo da sequência. Este princípio ficou conhecido como o Princípio Fundamental da Estratigrafia. Todos estes princípios parecem simples e óbvios, mas na época foram revolucionários. Notem, por exemplo, que se o dilúvio bíblico tivesse de facto ocorrido, era expectável que o registo geológico fosse muito mais desorganizado. Não seria de esperar que os estratos se encontrassem perfeitamente organizados em diversas sequências, apenas por vezes interrompidas por descontinuidades (ainda mal compreendidas). A realização de que as camadas sedimentares compreendiam sucessões temporais ordenadas de sedimentos teve grandes implicações. Permitiu ordenar o registo geológico e permitiu ordenar o tempo. Ainda não era uma medição exata, mas agora já era possível dizer que aquele evento aconteceu depois daquele outro evento. Nasce a cronoestratigrafia. Alguns anos mais tarde, com base em observações geológicas no norte de Itália (ver Figura em baixo), Giovanni Arduino (1714-1795) propôs a divisão da história da Terra em quatro períodos: Primitivo, Secundário, Terciário e Vulcânico, mais tarde designado por Quaternário. O Primitivo era composto pelas rochas duras que se encontravam no interior das montanhas, como os granitos, os xistos e os gnaisses. O Secundário deixou um registo de rochas calcárias estratificadas com fósseis marinhos. Por sua vez, as camadas que compreendiam o Terciário eram compostas por rochas menos consolidadas, por vezes com algumas conchas marinhas. E finalmente, o período Vulcânico correspondia às rochas formadas por vulcanismo atual, bem como a sedimentos fluviais e areias de praia. É interessante que alguma desta terminologia persista até hoje, em particular o Terciário e o Quaternário. Foi William Smith (1769-1839) que percebeu que diferentes camadas tinham diferentes conjuntos de fósseis e que isso era verdade mesmo quando o tipo de rocha era diferente. Ele não sabia por que isto acontecia — Darwin ainda tinha que descobrir a evolução — mas foi a chave para correlacionar diferentes camadas por todo o mundo. Isto ficou conhecido como o Princípio da Sucessão Fossilífera e foi a base para o que ficou conhecido como bioestratigrafia. O que permitiu o desenvolvimento da geocronologia relativa. A última chave do puzzle foi introduzida por Charles Lyell (1797-1875), como o Princípio das Relações de Corte, que afirma que se uma formação rochosa está falhada ou é intruida por uma outra rocha, a atividade da falha e a rocha intrusiva são posteriores à formação rochosa original. Este conceito teve uma grande importância para a organização do registo geológico em regiões complexas e deformadas, onde o registo fóssil muitas vezes não existia. Uma extensão deste princípio é o Princípio da Inclusão. Se uma rocha sedimentar contém outra rocha, a rocha que é contida é mais antiga do que a rocha que a contém. Alguns anos mais tarde, inspirado no livro de Lyell Princípios de Geologia, Charles Darwin (1809-1882) desenvolveu uma teoria que permitiu explicar porque é que rochas de diferentes idades têm diferentes conjuntos de fósseis — a teoria da evolução. No entanto, a geocronologia absoluta só foi possível após a descoberta da radioatividade por Henri Becquerel (1852-1908) e Maria Salomea Skłodowska-Curie (1867-1934). Isto é, a datação precisa de uma determinada rocha que continha, ou não, um determinado registo fóssil. A geocronologia absoluta, introduzida por Bertram Boltwood (1870-1927), baseia-se no facto de que alguns isótopos radioativos (ditos pai) se transformarem noutros ao longo de milhões de anos (ditos filho). O tempo que metade dos isótopos pai levam a transformar-se nos isótopos filho (período de semi-vida) é determinado, conhecido e constante para cada elemento. Assim, sabendo a quantidade inicial do isótopo pai e a quantidade dos elementos filhos no dia de hoje, os geólogos conseguem calcular com grande precisão a idade da rocha. Finalmente, tínhamos ao nosso dispor uma ferramenta poderosa para quantificar o tempo geológico. A partir deste momento, podíamos datar uma determinada rocha de forma exata. Por exemplo, uma rocha vulcânica que sabíamos ter a mesma idade de uma outra rocha que continha um determinado fóssil de idade (fóssil de um organismo que viveu num período específico). Podíamos saber que essas duas rochas tinham a mesma idade aplicando os princípios enunciados em cima. A partir daí, e já com uma datação absoluta em mãos, é então possível extrapolar a idade de qualquer outra rocha, em qualquer outro ponto do mundo, que contenha esse fóssil. É isso que fazemos ainda hoje. As datações absolutas ainda são caras e dispendiosas. Partes do texto adaptadas de: Duarte, J.C., 2023. A timeline of Earth's history. In Green., M., Duarte, J.C., eds, A Journey Through Tides, 117-131. Elsevier Books. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-90851-1.00010-8 Outras leituras que inspiraram partes deste texto: Galopim de Carvalho, A.M., 2014. Evolução do pensamento geológico: nos contextos filosófico, religioso, social e político da Europa, 1ª ed. – Lisboa, Âncora, 277 p., ISBN 978-972-780-436-8 Levin, H.L., and King Jr., D.T., 2016. The Earth Through Time, 11th ed. Wiley, 2016, ISBN: 978-1-119-228. Crédito da imagem: Peter Forster, via https://unsplash.com/pt-br #geologia
1 Comment
Fernando Soares
8/30/2023 03:26:09 am
Muito bom. Um grande exemplo de disseminação inclusiva do conhecimento.
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