No post anterior introduzi o conceito de registo geológico e defini o que era o tempo geológico. Deixarei para os próximos posts aprofundar como conseguimos correlacionar diferentes eventos que ocorreram no passado profundo, espacialmente distantes entre si. Antes de lá ir, gostava de falar como evoluiu o conhecimento acerca da idade da Terra. Ou seja, qual terá sido o momento zero, o início do tempo geológico. É claro que podemos sempre estabelecer cronologias relativas. Este estrato A está por baixo daquele estrato B, portanto o estrato A deve ser mais antigo do que o estrato B. Ou que aquele estrato C está por cima daquele estrato B, portanto deve ser mais recente. E por aí em diante. Quando ponho um livro em cima de uma mesa, a mesa já lá estava antes do livro (a não ser que alguém tenha posto a mesa por baixo do livro, o seria estranho). Isto, em geral, funciona. Porém, para termos uma idade precisa (que em geologia dizemos absoluta), precisamos de ter um ponto de partida. Este ponto de partida geralmente corresponde a um evento. No nosso calendário (não-geológico), o tempo é medido em relação ao nascimento de Jesus. No dia de hoje, passaram 2023 anos desde que Jesus nasceu. Em 1755, quando houve um sismo em Lisboa, tinham passado 1755 anos desde que Jesus nasceu. E por aí em diante. Para medirmos o tempo geológico, o ideal seria sabermos exatamente quando o planeta Terra nasceu, com o rigor de 1 milhão de anos. Ora, isto é, para a ciência de hoje, impossível. Na verdade, até pode ser mesmo impossível por princípio. O processo de nascimento da Terra pode ter sido progressivo e ter durado vários milhões de anos. Então como é que conseguimos medir o tempo (geológico) se não conseguimos saber quando começou? Uma forma elegante de contornar o problema é medir o tempo em relação ao presente. Nós fazemo-lo muitas vezes quase sem nos darmos conta. Por exemplo, quando dizemos “eu casei-me há 6 anos”, em vez de dizer “eu casei-me quando tinha 36 anos”. Por vezes é mais útil contar o tempo a partir do presente. É precisamente o que fazemos com o tempo geológico. Quando dizemos que o dinossauro que encontrámos tem 120 milhões de anos, estamos na realidade a dizer que aquele dinossauro viveu há 120 milhões de anos (em relação presente). Ok, tudo bem. Problema resolvido. O problema é que os cientistas são mesmo curiosos… E gostavam mesmo de saber qual a idade da Terra. Hoje temos um número, mas não foi fácil lá chegar. E houve mesmo um tempo em que se pensou que a Terra não teria tido um começo, e portanto, o tempo geológico seria infinito para trás! É por aí que continuaremos hoje. Foram precisamente os gregos a pensar que a Terra era eterna e que o tempo não tinha tido um começo. Porém, diversas teorias teológicas proponham que a Terra tinha sido formada nalgum momento no passado recente (geologicamente falando). James Ussher (1581–1656), com base em relatos da Bíblia, calculou que a Terra tinha sido criada a 23 de outubro de 4004 a.C., ou seja, há aproximadamente cerca de 6000 anos. No século XVIII, vários pensadores começaram a especular que a Terra poderia ser bem mais antiga. Entre eles estava Benoît de Mailler e Gorge-Louis Leclerc (também conhecido como Buffon), que conjeturaram que a idade da Terra poderia ser da ordem dos milhões de anos! Na mesma época, James Hutton, um dos fundadores da geologia, teve uma visão clara da imensidão do tempo. Ele percebeu o significado de algumas discordâncias geológicas, que implicavam que os processos geológicos eram extremamente lentos e cíclicos. Hutton, no entanto, não conseguiu encontrar evidências claras para o início do tempo, o que o levou a defender uma perspetiva uniformitarista. Ou seja, os processos que hoje ocorrem, terão ocorrido da mesma forma no passado. No seu livro seminal intitulado Princípios de Geologia, Charles Lyell abriu o caminho para o uso dos estratos geológicos como a base para a construção de uma escala de tempo geológico. Lyell chegou mesmo a usar taxas de sedimentação e erosão para estimar que o registo geológico teria pelo menos algumas centenas de milhões de anos. O que já era bué para aqueles tempos! Vale a pena assinalar que foram estas ideias de Hutton e Lyell que inspiraram Charles Darwin a desenvolver as suas ideias acerca da evolução biológica e de seleção natural, processos que exigem uma enormidade de tempo. Darwin levou consigo na sua viagem no Beagle uma cópia do livro de Lyell*. Desde então, usando diferentes métodos, vários pensadores tentaram calcular a idade da Terra. John Phillips (1800–1874) usando também taxas de sedimentação e chegou a um valor de 96 milhões de anos. James Croll (1821–1890) através de uma combinação da análise de estratos e fósseis de períodos glaciais, bem com do cálculo de parâmetros orbitais, chegou ao valor de 240 milhões de anos. Samuel Haughton (1821–1897), com base em cálculos de perda de calor e de alterações climáticas, chegou a valores da ordem dos 2300 milhões de anos para a formação dos oceanos (e a Terra já teria de existir nessa altura, claro). Porém, todos estes cálculos tinham incertezas enormes e davam resultados muito díspares. Por exemplo, também nesta mesma altura William Thomson (1824–1907), conhecido como Lord Kelvin, usando cálculos do arrefecimento da Terra, chegou a valores da ordem dos 20–40 milhões de anos. E, por exemplo, John Joly usando a concentração atual de sal chegou a valores para a idade dos oceanos de 80–100 milhões de anos. Ou seja, estamos a falar de estimativas que podiam diferir entre si várias ordens de grandeza. Foi só após a descoberta da radioatividade que o progresso na medição do tempo geológico (e da idade da Terra) foi significativo. Por duas razões. Primeiro, a existência de radioatividade implicava que o arrefecimento da Terra não tinha sido um processo tão simples como se pensava. Isto porque o decaimento radioativo de elementos que constituem o manto produz uma quantidade de calor não desprezável que continua a aquecer a Terra ainda hoje, contrariando o seu arrefecimento natural. E, até aquela data, o arrefecimento da Terra era uma das melhores formas que tínhamos para medir a idade da Terra. A segunda razão é que é possível usar o decaimento radioativo de alguns elementos (como o urânio) para calcular a idade das rochas e dos minerais. Isto é, para fazer uma datação absoluta. Fixe! Era o que queríamos. Só é preciso encontrar uma rocha tão antiga como a Terra. Infelizmente, pelo menos no que diz respeito a calcular a sua idade, a Terra é um planeta dinâmico. As rochas na sua superfície, e no seu interior, estão continuamente a ser recicladas e transformadas umas nas outras. Conhecem-se muito poucas rochas com mais de 4000 milhões de anos. E claro, já para não falar que a Terra no início era um imenso mar de magma. Ou seja, não haviam rochas nem minerais! Hoje temos zircões (um mineral terrestre ultrarresistente) datados com 4404 milhões de anos (em Jack Hills, na Austrália). É este o mineral mais antigo que se conhece. Temos também datações de meteoritos que pensamos serem contemporâneos da formação da Terra com cerca de 4567 milhões de anos. É esta idade que pensamos ser a idade do planeta Terra. *Cópia dos Principles of Geology de Charles Lyell: https://shorturl.at/gnyBE Nota 1: A datação de rochas lunares é uma outra forma indireta de obter uma idade para a formação dos planetas dos sistema solar. Pensa-se que a Lua terá a mesma idade que a Terra, mas como não tem tectónica de placas as suas rochas conservam a idade original da sua consolidação. A idade obtida é de 4510 milhões de anos. Nota 2: Obrigado Adão Mendes pela leitura, correcções e sugestões. ______________________________ Partes do texto adaptadas de: Duarte, J.C., 2023. A timeline of Earth's history. In Green., M., Duarte, J.C., eds, A Journey Through Tides, 117-131. Elsevier Books. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-90851-1.00010-8 Outras leituras que inspiraram partes deste texto: Galopim de Carvalho, A.M., 2014. Evolução do pensamento geológico: nos contextos filosófico, religioso, social e político da Europa, 1ª ed. – Lisboa, Âncora, 277 p., ISBN 978-972-780-436-8 Levin, H.L., and King Jr., D.T., 2016. The Earth Through Time, 11th ed. Wiley, 2016, ISBN: 978-1-119-228. Fonte da imagem: Fonte: NASA, via https://unsplash.com/pt-br #geologia
0 Comments
A seta do tempo é uma das características mais fascinantes, no entanto, inexplicável, do nosso Universo. Ao contrário das dimensões mais intuitivas de espaço, o tempo corre apenas numa direção. Do passado para o futuro. Nós vivemos nesse pequeno instante a que chamamos presente. Para compreendermos o mundo à nossa volta, precisamos de nos lembrar de eventos passados e manter memória deles. Precisamos dessa memória para prever e preparar-nos para o futuro. Todas as atividades humanas, incluindo a ciência, dependem dessa capacidade. Mas, enquanto podemos facilmente manter memória de episódios que vivenciámos, como é que podemos aprender acerca de eventos que aconteceram há muito tempo no passado, num lugar onde ninguém esteve antes? Para isso, precisamos de contar com um registo — o registo geológico. O registo geológico compreende a totalidade de todas as rochas que se formaram ao longo do tempo geológico e que ainda se encontram preservadas. Isto inclui, por exemplo, as bacias sedimentares, as rochas vulcânicas e metamórficas, bem como fósseis de traços de vida e de organismos que viveram no passado. O registo geológico está sempre incompleto, mas a sua distribuição espaciotemporal não é aleatória. As camadas de rochas estão geralmente organizadas de uma forma ordenada, e a sua configuração obedece a princípios básicos. As rochas mais antigas encontram-se por baixo das rochas mais recentes. Qualquer perturbação nesta ordem dá-nos a indicação de que ocorreu um evento. Como detetives numa cena de um crime, podemos usar estas pistas para reconstruir sequências de eventos passados e aprender acerca dos processos que os causaram. O tempo geológico é o intervalo de tempo ocupado pela história geológica da Terra. Tecnicamente, começa quando o planeta formou-se há cerca de 4600 milhões de anos e estende-se até ao presente. Dada a imensidão de tempo envolvido e ao facto de os processos geológicos serem lentos, os cientistas consideram a unidade básica de tempo o milhão de anos (Ma). Da mesma forma que usamos horas e dias para organizar os eventos nas nossas vidas quotidianas, os cientistas da Terra usam os milhões ou dezenas de milhões de anos para descrever os eventos mais importantes que ocorreram no tempo geológico profundo da Terra. Não é que não haja processos a atuar a escalas de tempo mais curtas, mas esses eventos geralmente não deixam um registo direto e/ou a grande escala. Estes são também por vezes eventos singulares e limitados no tempo que são difíceis de correlacionar entre si, como um pequeno deslizamento de terra ou a erosão causada por uma onda numa praia. No entanto, por vezes, estes eventos de curto prazo podem ter impactos globais e deixar uma marca única no registo geológico. Um exemplo é o impacto de um grande meteorito ou a erupção de um supervulcão, que podem levar, por exemplo, à extinção quase instantânea (a escalas geológicas) de grupos de organismos. Isto conduz a um conceito central para aqueles que estudam o tempo geológico: a correlação. Para construir escalas de tempo que sejam nos sejam úteis, temos de ser capazes de correlacionar eventos singulares que ocorreram simultaneamente (a escalas geológicas) em diferentes locais do planeta. Mas como é que isto pode ser feito? Será que foi sempre trivial medir o tempo geológico? Como é que, por exemplo, sabemos a idade da Terra? A resposta a estas questões ficará para o próximo post. Texto traduzido e adaptado de: Duarte, J.C., 2023. A timeline of Earth's history. In Green., M., Duarte, J.C., eds, A Journey Through Tides, 117-131. Elsevier Books. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-90851-1.00010-8 Outras leituras: Galopim de Carvalho, A.M., 2014. Evolução do pensamento geológico: nos contextos filosófico, religioso, social e político da Europa, 1ª ed. – Lisboa, Âncora, 277 p., ISBN 978-972-780-436-8 Levin, H.L., and King Jr., D.T., 2016. The Earth Through Time, 11th ed. Wiley, 2016, ISBN: 978-1-119-228. Fonte da imagem: Fonte: https://unsplash.com/pt-br Bem. Por onde começar? Talvez pelo princípio… Houve várias razões pelas quais vim para a ciência. Uma delas, foi o facto de ter encontrado na biblioteca do meu pai alguns livros de ciência. Comecei a ler e gostei. Neles encontrei respostas para muitas perguntas que me assombravam na adolescência. Porque é que o universo existe? Será que o universo é finito ou infinito? Qualquer que seja a resposta, a verdade é que se pensarmos bem, nenhum das opções faz qualquer sentido. Talvez por isso me tenha focado naquilo que se encontra dentro do nosso universo. E, mais recentemente, no nosso planeta. O resultado foi que me apaixonei pela ciência. Na viragem do milénio entrei para Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), para o curso de Geologia. Lá encontrei outras pessoas como eu, e, motivado por professores como o Filipe Rosas e Pedro Terrinha, enveredei pelo campo da dinâmica da Terra. Nesta altura continuei a ler todos os livros de ciência que conseguia encontrar. Ou melhor, aqueles dos bons autores, como Sagan, Asimov ou Gould. Em Portugal havia o Jorge Buesco e o Professor Galopim de Carvalho. Como não gostava apenas de geologia, continuei a ler acerca de outras disciplinas, e comecei a ter a perfeita noção de que para compreendermos os processos geológicos (ou o que quer que seja em ciência) precisamos de ter um mínimo de compreensão em física, matemática, química e biologia. Foi então que, com alguns colegas da licenciatura, decidimos criar um blog de ciência (na altura estavam na moda). Chamava-se Terraquegira e chegou a ter cerca de 700.000 visitas. Escrevíamos em português e num determinado ano chegámos a publicar um post por dia. O blog ainda existe e a respetiva página do Facebook também, mas estão mortos. Entretanto, o volume de trabalho foi crescendo exponencialmente, e, a pouco e pouco, fui concentrando-me cada vez mais no meu trabalho e cada vez menos nos trabalhos de outras áreas. Entretanto, também começaram a ser publicados artigos de divulgação acerca do trabalho que ia fazendo com os meus colegas. Depois veio a televisão, a rádio, as visitas a escolas e a outras universidade, etc, e, só este ano, já gravei dois documentários. Isto foi-me mantendo ocupado no que diz respeito à divulgação de ciência. Hoje dou aulas na FCUL e leciono disciplinas como Tectónica, mas continuo a ser um apaixonado pela divulgação de ciência. Hoje estou (tecnicamente) de férias, o que quer dizer que tenho tempo para me dedicar a outras coisas de que gosto. Foi por isso que decidi criar este projeto que involve uma série de publicações em estilo de divulgação acerca de geologia, da dinâmica da Terra e de outros assuntos que possam interessar a um leitor curioso e apaixonado pela ciência. Se não forem apaixonados pela ciência também não há problema. Este é o post #0! O próximo virá já a seguir e intitula-se “O Tempo Geológico”. A ideia é tentar manter um ritmo de publicação semanal ou bissemanal. Os posts serão publicados no Facebook e na minha página pessoal, e eventualmente noutras redes. Quem sabe até na Terraquegira! Fonte da fotografia: Esta é minha! É uma das minhas fotografias favoritas. Foi tirada a correr com o telemóvel. A maré já vinha a subir e quase saímos de lá com água pelos joelhos. (Nota: esta versão da fotografia foi editada pelo João Mata, a quem agradeço). Sorry, this blog is in Portuguese for now. I am aiming for high school teachers, students and the general public in Portugal as the target audience. I may start a blog in English soon. You can also find me on Twitter and Facebook. See Home page.
|