A procura de padrões na natureza é tão antiga quanto o homem. É, portanto, difícil dizer exatamente quando terão nascido as primeiras ideias acerca da dinâmica e movimento da superfície do nosso planeta. Provavelmente terá sido um processo continuo, pontuado por momentos de epifania. Sabemos que os gregos já tinham explicações relativamente elaboradas para a origem dos terramotos e dos maremotos. Algumas destas teorias já associavam os terramotos à formação de montanhas e dos próprios mares e continentes. Afinal, como era possível encontrar fósseis marinhos no topo das cadeias de montanhas? Para além disso, a Grécia é uma zona com grande atividade geológica onde erupções vulcânicas, terramotos e maremotos são frequentes.
Apesar desta consciência de que vivemos num planeta ativo, terá sido apenas durante a produção dos primeiros mapas globais da Terra que se percebeu que os continentes pareciam encaixar como num puzzle. O cartógrafo Abraham Ortelius terá sido uma das primeiras pessoas a constatar este facto. No seu livro Thesaurus Geographicus (1596) propõe que todas as massas continentais que circundam o Oceano Atlântico teriam estado juntas e que estas foram separadas por grandes catástrofes associadas a terramotos e maremotos. Antonio Snider-Pellegrini (1858) foi provavelmente o primeiro a desenhar um grande supercontinente que englobava todos os continentes e a ilustrar a abertura do Oceano Atlântico. Esta proposta fundamentava-se no facto de se encontrar fósseis de plantas semelhantes em ambas as margens do Atlântico. Porém, Snider-Pellegrini não conseguiu providenciar uma explicação científica para o facto, tendo proposto que a separação do Novo e do Velho Mundo tinha resultado do dilúvio bíblico. Nos anos subsequentes, foram apresentados diversos argumentos a favor e contra a mobilidade da superfície da Terra. Apesar de a noção de que os continentes se teriam movido já estar implícita nos trabalhos apresentados por Snider-Pellegrini e de outros cientistas do seu tempo, foi Alfred Wegener que coligiu e compilou evidências sustentando a hipótese da deriva continental. Este trabalho foi publicado em 1915 sob a forma de um livro intitulado “A origem dos continentes e oceanos”. A hipótese da deriva continental sugere que os continentes teriam estado todos juntos num grande supercontinente, a Pangeia, e que esta se fragmentou levando a que os continentes se movessem até à sua posição atual. Alfred Wegener chegou a apresentar um mecanismo relacionado com a rotação da Terra e forças centrífugas que hoje sabemos estar errado. As escalas de tempo a que tais processos ocorreriam eram também essencialmente desconhecidas, pois os métodos de datação absolutos só surgiriam uns anos mais tarde com a descoberta da radioatividade. Contudo, a hipótese da deriva continental pode ser considerada uma revolução precursora da teoria da tectónica de placas, que só viria a tomar forma cerca de cinquenta anos mais tarde. No que diz respeito à hipótese da deriva continental é importante notar dois aspetos. A deriva continental nada diz acerca do que teria acontecido antes da Pangeia, e, mais importante, segundo esta hipótese apenas os continentes mover-se-iam através de uma “crusta” oceânica relativamente imóvel, como um navio quebra-gelo a navegar através do gelo (nesta analogia os continentes seriam o navio e o gelo seria a crusta oceânica). Este último aspeto teve importante consequência que levaram a que a teoria fosse rejeitada durante quase 50 anos. Afinal que mecanismo poderia fazer com que rocha sólida como a que constituí os fundos oceânicos pudesse “fluir” à medida que os continentes navegavam? Faltava, portanto, um mecanismo capaz de gerar e explicar estes grandes movimentos e justificar como as rochas podiam deformar como se fossem de plasticina. A capacidade de as rochas fluírem ao longo de escalas de tempo geológicas (milhões de anos) foi algo que só se compreendeu anos mais tarde com o desenvolvimento da reologia, a disciplina que estuda o comportamento mecânico das rochas. Foi apenas em 1931 que Arthur Holmes propôs um mecanismo capaz de explicar as causas da deformação da superfície terrestre e da deriva dos continentes. Este mecanismo estaria relacionado com a existência de grandes correntes de convecção no interior do manto. Segundo Holmes, devido à existência de materiais radioativos no interior da Terra, o manto ainda estaria suficientemente quente para que uma parte da perda de calor se desse por convecção, isto é, através do seu movimento interno, como numa panela de água a ferver (em oposição à perda de calor por condução, que se dá sem que haja movimento do material aquecido). Segundo esta perspetiva, zonas de ascensão de correntes quentes provenientes da base do manto causariam o estiramento da crusta terrestre, e as zonas frias descendentes das correntes corresponderiam a zonas de enrugamento da crusta e de formação de montanhas. Apesar desta visão já incorporar alguns elementos primitivos da teoria da tectónica de placas, havia ainda limitações muito importantes. Segundo o modelo de Holmes, as correntes de convecção não ascendiam até à superfície e, como tal, a crusta da Terra deformava mas não se encontrava fragmentada (em placas). Havia apenas um única "placa" que cobria todo o planeta (à semelhança do que acontece com a Lua ou Marte). É muito também importante salientar que as correntes de convecção não foram propostas para explicar a tectónica de placas, mas sim a deriva continental. A teoria da tectónica de placas surge apenas 30 anos após o mecanismo das correntes de convecção ter sido proposto para explicar a deriva continental. A chave para o desenvolvimento da teoria da tectónica de placas surge apenas anos mais tarde com a exploração dos fundos oceânicos. Este será o tema da próxima publicação. Texto adaptado de Duarte, J.C., A teoria da tectónica de placas: uma perspectiva. APPBG. Figura: Desenho de Snider-Pellegrini (1858). #geologia
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A teoria da tectónica de placas é uma teoria unificadora das ciências da Terra sólida. Teorias unificadoras correspondem a mudanças de paradigma que revolucionam a forma como compreendemos o mundo em que vivemos. Um outro exemplo de uma teoria unificadora é a teoria da evolução de Darwin. Esta implicou uma mudança radical na forma como interpretarmos o mundo biológico. A teoria da tectónica de placas correspondeu a uma mudança de paradigma que revolucionou a forma como compreendemos o planeta em que vivemos. No entanto, esta é uma teoria relativamente recente e, como tal, não totalmente consolidada. Ainda hoje persistem em diversos meios académicos elementos de teorias anteriores e de passos intermédios, como a deriva continental. É, portanto, fundamental conhecer o caminho que nos trouxe até aqui. Nas próximas publicações irei tentar contextualizar brevemente a teoria da tectónica de placas. Irei depois providenciar uma visão atual e explorar perspetivas futuras.
Antes de começarmos é importante arrumar alguns conceitos. O que é a tectónica? O que é a tectónica de placas? E o que é a teoria da tectónica de placas? A tectónica é uma disciplina científica que estuda o movimento e a deformação da superfície de planetas rochosos (por vezes também denominados de planetas terrestres ou silicatados). Apesar de ser tradicionalmente aplicada à Terra, hoje sabemos que todos os planetas rochosos, assim como as luas rochosas, têm algum tipo de tectónica, seja esta uma tectónica de impacto associada à colisão de meteoritos ou uma tectónica relacionada com a dinâmica interna do planeta. O que a Terra tem de especial é possuir um tipo particular de tectónica a que chamamos tectónica de placas. Neste sentido, podemos dizer que a tectónica de placas é um processo, isto é, um conjunto de eventos e interações que ocorrem de acordo com leis naturais e que podem ser observados, medidos e explicados de acordo com teorias e modelos científicos. A teoria da tectónica de placas é a teoria que descreve como este conjunto de processos tectónicos estão organizados e como estes se interrelacionam para dar origem à tectónica de placas. Na sua forma mais simples, a teoria da tectónica de placas descreve como a superfície do planeta Terra se encontra fragmentada em diversas placas tectónicas, semi-rígidas, que se movem umas em relação às outras sobre uma camada mais dúctil, a astenosfera. Cada placa é formada por crusta, que pode ser oceânica ou continental, e pela parte mais superficial do manto, o manto litosférico. Em conjunto, a crusta e o manto litosférico constituem a litosfera. Na sua origem, a teoria da tectónica de placas era uma teoria cinemática que descrevia como as placas se moviam através da superfície esférica da Terra. Nos anos imediatos à sua formulação, procurou-se ir mais longe e tentar compreender quais as forças que causam o movimento das placas. Atualmente, a comunidade científica encontra-se a desenvolver uma nova teoria que tenta integrar a tectónica de placas com a estrutura e dinâmica interna do manto. Estou cada vez mais convencido de que a tectónica de placas é um processo emergente que resulta da interação de processos complexos que ocorrem a diferentes escalas, desde a rede cristalina dos minerais aos grandes movimentos convectivos resultantes da instabilidade da litosfera. A tectónica de placas acontece porque as placas oceânicas arrefecem e se tornam mais densas, porque isto leva a mudanças na estrutura dos minerais, porque os minerais têm defeitos, porque estes defeitos permitem que as rochas fluam sem perder a sua coerência e porque existe uma memória no sistema. Isto é, os processos anteriores influenciam os processos futuros de forma irreversível. Neste sentido, a tectónica de placas é uma teoria termodinâmica. É neste ponto que nos encontramos hoje e ainda temos muitas questões científicas por responder. De onde vem a energia motriz dos processos tectónicos? Como é que estes evoluem no tempo? Como é que funciona a tectónica nos noutros planetas silicatados? Qual a relação entre a tectónica de placas e a vida? Uma última nota. É preciso não esquecer que a tectónica de placas é na sua essência uma teoria física (geodinâmica) da Terra, mas na qual os processos químicos e biológicos têm um papel fundamental. Disciplinas como a geodinâmica química e a biogeodinâmica desempenham cada vez mais um papel essencial na nossa compreensão da dinâmica da Terra. No entanto, eu gosto de relembrar que só há uma ciência! As caixinhas que inventamos e que a que chamamos “disciplinas” estão de facto profundamente interligadas e nunca compreenderemos os processos geodinâmicos fundamentais se não pensarmos de uma forma integrada e transdisciplinar. A ideia aqui é tentar explorar alguns destes conceitos de forma simples e acessível. Vamos a isso... Texto adaptado de Duarte, J.C., A teoria da tectónica de placas: uma perspectiva. APPBG. Imagem: Mapa baseado no trabalho de Marie Tharp and Bruce Heezen nos anos 50 do século passado. #geologia A Terra é um planeta rochoso. Excluindo os oceanos e a atmosfera, o nosso planeta é essencialmente constituída por rochas. A Terra possuí também um gradiente geotérmico, ou seja, a temperatura varia (aumenta) em função da profundidade. Para além disso, a pressão também aumenta. Isso tem dois efeitos. Por um lado, leva a que os elementos/materiais mais leves tendam a concentrar-se próximo da superfície, e a que os mais pesados afundem. Por outro lado, o próprio comportamento mecânico (reológico) das rochas varia em profundidade. Isto causa uma estratificação química (expressa pela distribuição não aleatória dos elementos químicos em profundidade) e física (expressa pela forma como as rochas se comportam mecanicamente em função da pressão e temperatura a que estão sujeitas). É um pouco como quando colocamos água e azeite num recipiente. Estes separam-se por efeito das diferenças de densidade. O azeite fica em cima porque é menos denso (mais leve) do que a água. A densidade dos materiais relaciona-se, em parte, com a sua composição química. Mas há também diferenças nas propriedades físicas, ou seja, no modo como as moléculas se organizam em função da pressão e temperatura. Por exemplo, o azeite é mais viscoso do que a água. Na Terra acontece algo semelhante, mas nem sempre as mudanças nas propriedades físicas correspondem a mudanças nas propriedades químicas. Em geral, a densidade e a viscosidade dos materiais aumentam com o aumento da profundidade, mas há exeções, o que torna a dinâmica da Terra muito interessante! Imaginem aquecer um recipiente com vários tipos de líquidos estratificados. Mas, para já, vamos focar-nos na estratificação da Terra.
Em termos da sua composição química, a Terra pode ser dividida em crusta, manto e núcleo. A crusta é a camada mais externa e mais leve, e vem em duas variedades. A crusta continental, constituída por rochas de composição granítica, e a crusta oceânica, constituída por rochas basálticas. Tanto a crusta continental como a crusta oceânica pode conter uma camada superficial de rochas sedimentares. Os elementos químicos mais comuns na crusta são (por ordem decrescente) o oxigénio, o silício, o alumínio, o ferro, o cálcio, o sódio, o potássio e o magnésio. A espessura da crusta nos oceanos é de apenas cerca de 7 km, enquanto que nos continentes geralmente varia entre os 30 e os 50 km. O manto encontra-se imediatamente por baixo da crusta e é essencialmente constituído por peridotito. Os elementos químicos mais comuns no manto são o oxigénio, o silício, o magnésio e o ferro. O manto tem uma espessura de cerca de 2900 km. Por baixo do manto está o núcleo, que é essencialmente constituído por ferro e níquel. O núcleo tem uma forma esférica com um raio de cerca de 3500 km. Os fatores que levaram à estratificação química da Terra são complexos e evoluíram no tempo. No entanto, podemos pensar que no início a Terra era essencialmente constituída por rochas parcialmente fundidas e por magma. Isto levou a que os materiais mais leves se deslocassem (devido à sua flutuabilidade) para as zonas mais superficiais da Terra, e que os materiais mais densos afundassem para o seu interior. Os materiais mais leves à superfície formaram uma crusta primordial. Porém, com o evoluir dos processos geodinâmicos, em parte gerados por uma estruturação física cada vez mais complexa, bem como resultado do desenvolvimento de zonas de rifte, de zonas de subducção e de interações entre plumas do manto e a litosfera, geraram-se um conjunto de mecanismos de fusão de rochas e de diferenciação magmática que permitiram a diferenciação de uma crusta continental e de uma crusta oceânica (isto terá de ficar para uma outra publicação). Em termos de propriedades físicas, a Terra pode ser dividida em litosfera, astenosfera, manto inferior, núcleo externo e núcleo interno. A litosfera é constituída pela crusta e por uma parte do manto. A sua espessura é muito variável, podendo atingir os 100 km nos oceanos e os 250 km nos continentes. A litosfera é a camada mais fria e rígida da Terra e mecanicamente apresenta um comportamento frágil (ou seja, é "quebradiça"). Como tal, a litosfera encontra-se dividida em diversas placas tectónicas que se movem umas em relação às outras sobre uma camada mais dúctil (ou seja, mais "mole"), a astenosfera. Há algumas discrepâncias na definição de astenosfera, mas no meu trabalho é geralmente mais útil considerar que a astenosfera se estende até aos 660 km de profundidade (mas há quem considere que a astenosfera se estende até aos 400 km e que entre os 400 e os 660 km há uma zona de transição). Neste perspetiva, a parte da litosfera que é constituída por manto mais a astenosfera formam o manto superior. Ao manto restante (dos 660 km até à fronteira manto-núcleo) denomina-se manto inferior. O manto inferior é cerca de 100 vezes mais viscoso do que o manto superior. Todo o manto encontra-se no estado sólido, com a exeção de algumas zonas mais superficiais onde pode ocorrer alguma fusão parcial. Por isso é preciso ter cuidado quando dizemos que uma parte do manto é mais mole do que outra (isto também ficará para outra publicação). Por baixo do manto, encontra-se o núcleo externo. Este sim, pensa-se que poderá estar no estado líquido. Porém, na verdade, ninguém sabe. O que podemos dizer é que o núcleo externo se comporta como um líquido, mas poderá de facto estar num estado que é estranho à nossa intuição. Uma espécie de plasma, como no interior das estrelas. A estruturação física da Terra resulta das rochas apresentarem diferentes comportamentos mecânicos (e da sua estrutura cristalina se reorganizar) em função da pressão e da temperatura. Da mesma forma que a água se transforma em gelo quando arrefece (ou se aumentarmos muito a pressão). No fundo, estas mudanças de fase são uma forma de minimização de energia. Em geral, e ao contrário do caso da água e do gelo, os materiais mais frios (devido ao decréscimo de energia) tendem a organizar-se de uma forma mais compacta, e são, portanto, mais densos e rígidos. Os materiais mais quentes têm mais energia térmica e a sua estrutura é, em geral, menos densa e menos rígida. Todos nós temos a intuição de que um material mais quente é mais mole e menos denso, e que ao arrefecer se torna mais denso e rígido. É isso que acontece quando a litosfera oceânica se forma a partir do arrefecimento do manto. Torna-se mais densa e mais rígida, e é por isso que tem uma propensão para afundar no manto. Mas é aqui que as coisas se complicam um pouco. A crusta continental ao arrefecer torna-se mais rígida, mas continua a ser menos densa do que o manto que está por baixo. Isto porque é essencialmente constituída por elementos leves (tem portanto uma flutuabilidade que não é térmica, mas sim química). Também, à medida que vamos mais fundo no manto, a sua viscosidade e resistência aumentam devido ao aumento da pressão e ao facto de este ser constituído por elementos químicos mais pesados, isto apesar da temperatura também aumentar. Ou seja, o efeito combinado da pressão e da temperatura não é trivial, pelo que as rochas podem apresentar comportamentos complexos. Um destes comportamentos expressa-se ainda pela capacidade que as rochas têm de fluir no estado sólido. Como consequência, a transferência de calor entre o interior e a superfície da Terra ocorre não apenas por condução, mas também por convecção. Isto é, através do movimento das rochas. Mas é preciso não esquecer que tudo isto ocorre no manto no estado sólido (aqui a nossa intuição também falha). Até este momento temos assumido que a Terra tem uma estruturação em camadas concêntricas. No entanto, hoje sabe-se que o manto tem uma estrutura interna. Isto porque a litosfera oceânica afunda no manto subjacente até à fronteira com o núcleo, dando origem a zonas de manto descendentes físico e quimicamente diferenciadas. Por outro lado, existem pilhas de material mais quente e leve em torno do núcleo a partir das quais se geram plumas de material ascendente. Mais à frente iremos ver como estas estruturas se relacionam com a dinâmica da Terra, mas para isso teremos de mergulhar profundamente na teoria da tectónica de placas. Será este o tema das próximas publicações. #geologia Imagem adaptada de Alistair Hamill (https://twitter.com/lcgeography) Este mapa de Stern et al. (2016) mostra bem porque é que o sismo de 1755 nunca devia ter acontecido. Neste mapa estão assinalados todos os sismos com magnitude superior a 8,5 ocorridos entre 1687 e 2016. É possível observar que todos eles ocorreram perto de grandes zonas de subducção, com a exceção do sismo de 1950 na China (mas aqui podemos argumentar que é uma zona de subducção continental). A outra exceção foi o sismo de 1755. Este foi o maior sísmico registado em todo o Atlântico, Mediterrâneo e África, e ilustra bem que algo muito particular está a ocorrer na nossa margem. Para gerar um sismo como este (e um tsunami transatlântico) é necessário uma falha tectónica muito grande (com centenas de quilómetros) e um deslocamento do fundo do mar muito considerável (dezenas de metros). O problema é que nunca encontrámos uma falha com estas características. E pior. O sismo de 1755 não foi um único grande evento sísmico a ocorrer nesta zona. Em 1969 houve um outro sismo de grande magnitude (M7,9). E este ocorreu numa zona completamente plana da planície abissal, onde não há nenhuma grande falha mapeada. Isto levanta dois problemas. O primeiro é que mostra que ainda não sabemos muito bem o que gerou o sismo de 1755 (temos algumas ideias). O segundo é que provavelmente todos os mapas de perigosidade sísmica que estamos a usar, e tudo o que vem a montante (mapas de risco sísmico, normas de construção, etc), poderão estar errados. Ainda há muito por fazer e deveria haver muito mais investimento na ciência de base. Os sismos são cíclicos e sismos como estes vão voltar a acontecer. Só não sabemos se será daqui a umas décadas, ou logo à tarde. Mas nós hoje temos um dado precioso. O sismo de 1755 nunca devia ter acontecido, mas como aconteceu nós agora sabemos que irá voltar a acontecer. Os desgraçados que viveram em 1755 não sabiam disso. E isto dá-nos uma responsabilidade acrescida, como sociedade. Está nas nossas mãos decidir o que fazer com este conhecimento. PS1: Algumas coisas têm sido feitas. Muitas devido à carolice dos cientistas que continuam a dedicar-se à ciência com niveis de financiamento e estabilidade profissional muito baixos. PS2. Sismo como 1755 poderão não ser a única ameaça. Um sismo de magnitude 7 na Falha do Vale do Tejo, como aconteceu em 1531, será tão ou mais catastrófico. E o período de recorrência destes sismos é muito mais curto. #geologia #1755 Referência: Stern, R.J., Scholl, D., and Fryer, G. 2016. Convergent Plate Margin Hazards. Plate Tectonics and Natural Hazards. In Eds. Duarte, J. and Schellart, W., Plate Boundaries and Natural Hazards, Geophysical Monograph 219, AGU 77-98. https://doi.org/10.1002/9781119054146.ch4 Acabei de ouvir um podcast internacional com grande audiência em que o tema abordado foi “What drives the movement of Earth's continents?”. Ou seja, "O que causa o movimento dos continentes?".
Tirando algumas (muitas) imprecisões normais em comunicação da ciência, os anfitriões explicaram relativamente bem que o movimento das placas está relacionado com o seu afundamento no manto. O que me fez mais confusão foi o uso do termo “continental plates” como sinónimo de “tectonic plates”, ou seja, a expressão "placas continentais". Já encontrei este termo várias vezes e ilustra bem alguma confusão que há entre a hipótese da Deriva Continental e a Teoria da Tectónica de Placas. A hipótese da Deriva Continental resultou da constatação de que os continentes se tinham movido milhares de quilómetros. Apesar de não se compreender qual o mecanismo capaz de gerar tal movimento, Alfred Wegener coligiu um conjunto de evidências que sustentavam fortemente esta hipótese. No entanto, é preciso não esquecer que na Deriva Continental apenas os continentes se moviam. Não se sabia o que se passava nos oceanos e ainda não havia a noção de placa (nem de fronteiras de placas). Faltava também um mecanismo capaz de fazer mover os continentais. Wegener chegou a propor que este poderia estar relacionado com a rotação da Terra, algo que nunca foi verdadeiramente considerado. Foi apenas anos mais tarde, em 1931, que Arthur Holmes especulou acerca da existência de correntes de convecção no interior da Terra que deformariam a crusta sobrejacente, levando os continentes a moverem-se. Porém, estas correntes não ascenderiam à superfície. A hipótese do alastramento oceânico só viria a ganhar forma 30 anos mais tarde. É verdade que a Deriva Continental foi uma revolução. A ideia de que a superfície do planeta se tinha movido milhares de quilómetros era uma ideia radical e profundamente contraintuitiva. Há várias razões para ter havido uma grande resistência a esta ideia, mas a principal talvez tenha sido o facto ser difícil compreender como é rocha sólida é capaz de fluir. Ideia que ainda faz confusão a muita gente. Por exemplo, no podcast, é dito várias vezes que o manto é constituído por magma líquido. Mas depois também dizem que o manto está no estado sólido, o que causa uma enorme confusão. Isto revela as limitações que temos em compreender a Teoria de Tectónica de Placas, que é uma teoria física e que implica ter algumas noções de física e de química. É por isso que não faz muito sentido tentar explicar a Teoria da Tectónica de Placas a alunos do 7º Ano, pois eles ficam com a ideia que isto é uma teoria descritiva, sem conseguirem perceber verdadeiramente os mecanismos e o processos (fisico-químicos). Mas isto ficará para uma outra publicação. Vamos voltar ao nosso tema. A Deriva Continental foi de facto uma revolução que implicou rever todas as nossas ideias acerca de como a Terra funciona, e ao fazê-lo abriu caminho para a revolução seguinte, a Tectónica de Placas. Mas a Tectónica de Placas é todo um outro mundo. De acordo com a Teoria da Tectónica de Placas a superfície da Terra está (toda!) dividida em grandes placas que se movem umas em relação às outras. E é aqui que começam as diferenças. As placas são constituídas maioritariamente por manto. A crusta, em especial nos oceanos, é uma camada muito fina que é arrastada passivamente pelo manto litosférico. Outra diferença fundamental é que os limites das placas não correspondem aos limites dos continentes, e cada placa tem, geralmente, uma parte oceânica e uma parte continental. É, portanto, errado, dizer que a Deriva Continental foi o início da Teoria da Tectónica de Placas. A Teoria da Tectónica de Placas foi uma segunda revolução que implicou voltar a mudar de paradigma, incluindo abandonar os mecanismos propostos no contexto da Deriva Continental. Na prática, a única coisa que ficou da Deriva Continental, na sua forma inicial, foi a constatação de que os continentes se moviam e as evidências que o suportavam, pouco mais. É por isso preciso ter muito cuidado e não transportar diretamente os mecanismos propostos para explicar a Deriva Continental para o contexto da Teoria da Tectónica de Placas. Mas é precisamente isso que se faz (erradamente) quando se afirma que o principal motor da tectónica de placas são as correntes de convecção do manto. Ora, como vimos, as correntes convecção foram propostas por Holmes em 1931 para explicar a Deriva Continental, e nunca foram, pelo menos de forma convincente, propostas para explicar a Tectónica de Placas. Quando Henry Hess e Tuzo Wilson, no início dos anos 60, abordaram o tema das correntes de convecção, ainda o fizeram no contexto da hipótese da Deriva Continental. Mas assim que Wilson percebeu que a superfície da Terra estava dividida em placas, na segunda metade dos anos 60, nasceu um novo paradigma e foi preciso rever tudo o que se sabia. Logo no início da década seguinte se percebeu que as correntes de convecção não seriam capazes de arrastar as placas, mas que estas se moviam como consequência do seu afundamento ao longo das zonas de subducção. Afundamento este que resultava do arrefecimento e consequente aumento de peso dos segmentos oceânicos das placas (ver, por exemplo, os trabalhos de Elsasser, Jacoby e Forsyth and Uyeda). Conclusão. Não faz sentido falar em placas no contexto da Deriva Continental. Deve-se falar apenas em continentes. E no contexto da Teoria da Tectónica de Placas, não faz sentido falar em placas continentais (como sinónimo de placas). Isto baralha a Deriva Continental com a Tectónica de Placas, com as implicações que tenho discutido aqui. Uma última nota. Não quero com isto diminuir o papel absolutamente crucial que as ideias de Wegener tiveram para o que viria a ser a Teoria da Tectónica de Placas. No entanto, o conceito de placa só surge, proposto por Wilson, muitos anos após a morte de Wegener. Dizer que Wegener contribuiu para a Tectónica de Placas é o mesmo que dizer que Newton contribuiu para a teoria da relatividade geral de Einstein. Voltarei a estes temas em breve na rubrica “Uma Perspectiva da Terra”. #geologia #tectónica Imagem: Clay Banks, via Unsplash Quando era miúdo havia nove planetas. Depois passou a haver oito. Fiquei preocupado. Os planetas pareciam raros. Perder um planeta não me parecida uma boa ideia. Depois disseram que afinal Plutão era um planeta anão. Mas há nove planetas anões. Ah! Afinal há 17 planetas no sistema solar. Porém, quando começámos a perceber que as luzinhas que vemos no céu à noite não são buracos, mas sim outras estrelas como o Sol, suspeitámos que deveria haver planetas a orbitar essas estrelas. Até podemos fazer um cálculo simples. Calcula-se que possa haver 400 mil milhões de estrelas na nossa galáxia. Cada estrela poderá ter vários planetas. Ou seja, deve haver bem mais do que 400 mil milhões de planetas só na nossa galáxia. E podemos continuar. Sabendo que há cerca de 100 mil milhões de galáxias no universo visível, podemos concluir que deve haver cerca de 10000000000000000000000 planetas no universo visível. Uma nota. Se houver vida em apenas 0,01% desses planetas, significa que há cerca de 1000000000000000000 planetas com vida. Como já devem ter percebido, um exoplaneta é um planeta que orbita outra estrela que não o Sol. Ou seja, são planetas que fazem parte doutros sistemas solares. O primeiro exoplanetas foi descoberto em 1992. No dia 30 de Novembro de 2023 (ontem) haviam sido detetados 5550 exoplanetas. Destes exoplanetas, 1903 são semelhantes a Neptuno, 1763 são gigantes gasosos, 1678 são Super-Terras, 199 são planetas terrestres e 7 não se sabe bem o que são. Os planetas terrestres são planetas rochosos com dimensões semelhantes às da Terra. Os meus preferidos são as Super-Terras, que podendo ser planetas rochosos, são significativamente maiores do que a Terra. Existem várias formas de detetar exoplanetas. A forma mais comum é através da passagem do planeta em frente à sua estrela, provocando um espécie de pequeno eclipse. A forma menos comum é a deteção direta. Isto porque os exoplanetas não emitem luz própria. Por outro lado, são também mais pequenos do que as estrelas, o que leva a que haja um enviesamento no tipo de exoplanetas que conseguimos detetar. Estes são em geral planetas grandes localizados perto das suas estrelas. Alguns destes exoplanetas orbitam a sua estrela na zona habitável. A zona habitável corresponde a uma faixa, nem muito perto, nem muito longe da estrela, onde a água pode existir no estado líquido. E pensa-se que a existência de água no estado líquido à superfície de um planeta seja essencial para que este tenha vida. Afinal, somos 60% água. Concluindo, nos últimos anos detectámos milhares de exoplanetas. Com novos telescópios como o James Webb e com a nova geração de telescópios que serão lançados na próxima década, encontraremos muitos mais exoplanetas. Alguns destes exoplanetas poderão ter vida. Ou seja, podemos estar a poucos anos de detetar vida fora da Terra. E essa seria talvez a maior descoberta de todos os tempos. Imagem: Quatro exoplanetas a orbitar a estrela HR 8799. Outras leituras: O Fanerozoico é o éon da história da Terra no qual vivemos. Começou há 541 milhões de anos (Ma) e está dividido em três eras: o Paleozoico, o Mesozoico e Cenozoico. O Fanerozoico é caracterizado por uma tectónica de placas tal como conhecemos e por um clima relativamente estável, o que permitiu a evolução de vida complexa. Fanerozoico significa "vida visível". Após a fragmentação do supercontinente Rodínia, há cerca de 750 Ma, os continentes dispersaram-se. Por volta dos 600 Ma, juntaram-se temporariamente num supercontinente chamado Pannotia. Aos 550 Ma a Pannotia separa-se, deixando para trás algumas das suas massas continentais juntas num megacontinente chamado Gondwana. A Gondwana incorporava a África, a América do Sul, a Austrália, a Índia e a Antártida. Esta acabou por colidir com a Laurásia, formada pela América do Norte e pela Eurásia, dando origem à Pangeia. Foi este o último grande supercontinente a existir na Terra. Pangeia significa "toda a terra". A Pangeia formou-se no final do Paleozoico, há 335 Ma, e existiu durante cerca de 130 milhões de anos. Durante todo este tempo, existiu também um superoceano, o Pantalassa, que ocupava 70% da superfície da Terra (Pantalassa significa "todo o mar"). A Pangeia começou a fragmentar-se por volta dos 200 Ma, durante a era Mesozoica, dando origem ao Oceano Atlântico. O Oceano Pacífico corresponde hoje ao que resta do Pantalassa; mas embora a bacia oceânica seja a mesma, a crusta oceânica do Oceano Pantalassa foi quase totalmente renovada devido à geração de nova crusta nas dorsais dos Pacífico e ao consumo da crusta mais antiga nas zonas de subducção do famoso Anel de Fogo do Pacífico. Durante o Fanerozoico houve, no entanto, variações climáticas significativas, com alguns períodos mais quentes e uma série de glaciações. Por exemplo, o clima da Pangeia era relativamente mais quente do que o clima de hoje, devido ao seu vasto interior desértico e seco, e ao facto de se dispor em torno da zona equatorial. A Pangeia permaneceu quente, mesmo quando os mares de pouca profundidade (ditos epicontinentais) invadiram o supercontienente. Foi nestes mares que se formaram uma grande parte dos calcários que encontramos hoje no nosso território. Após a fragmentação da Pangeia, a circulação oceânica e atmosférica começou a aproximar-se cada vez mais das dos dias de hoje. Porém, este não foi um processo contínuo e progressivo. Durante esta período de tempo, ocorreram vários eventos tectónicos que causaram mudanças climáticas importantes, como, por exemplo, o fecho do Istmo do Panamá, que cortou a ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico e permitiu a formação da Corrente do Golfo; a separação da Austrália da Antártida, que levou à formação da Corrente Circumpolar Antártica; e a formação dos Himalaias, que resultou da colisão entre a Índia e a Eurásia e levou à formação da Monção Indiana. Sabe-se ainda que ocorreu um período quente no início do Eocénico, logo após o Máximo Térmico do Paleocénico-Eocénico, durante o qual a temperatura da Terra aumentou cerca de 6 graus em cerca de 20 mil anos. Desde então, o clima da Terra tem vindo gradualmente a arrefecer. Nos últimos 2 milhões de anos, o clima da Terra foi caracterizado por uma série de glaciações e períodos inter-glaciares. O Fanerozoico é também caracterizado por grandes mudanças no que diz respeito à vida. A “explosão de vida” do Câmbrico (o primeiro período da era Paleozoica, que começa aos 541 Ma), foi caracterizada pelo aparecimento e diversificação de um grande número de vertebrados e invertebrados. A maioria dos filos que conhecemos hoje apareceu durante este período. As plantas colonizaram a terra aos 420 Ma, gerando vastas florestas tropicais. Os artrópodes começaram a explorar a terra emersa e os vertebrados desenvolveram patas e pulmões. Até meados do Carbónico (~320 Ma) a superclasse dos tetrápodes, a superclasse à qual pertencemos, era dominada pelos anfíbios. Porém, a rápida perda dos seus habitats, provavelmente devido à diminuição da intensidade das marés, abriu uma oportunidade para a evolução dos répteis. Em terra, a era Mesozoica (que começa aos 251 Ma) foi dominada pelos dinossauros e por uma flora de coníferas. Durante o Cretácico, por volta dos 130 Ma, surgem as primeiras plantas com flor. No final do Cretácico, aos 66 Ma, um grande número de dinossauros extingue-se, provavelmente devido a uma sequência de grandes supererupções vulcânicas que coincidiram com um impacto de um meteorito na zona onde hoje se localiza o Golfo do México. As primeiras aves e mamíferos surgem ainda durante o Mesozoico, mas é apenas durante o Cenozóico, após a grande extinção dos dinossauros, que conseguem prosperar. A formação e dispersão da Pangeia tiveram um papel fundamental na evolução e diversificação da vida, destruindo e criando constantemente novos nichos. Mas a evolução da vida complexa não ocorreu de um modo simples e linear. O Fanerozoico foi marcado por cinco grandes extinções em massa, todas elas levando à quase aniquilação da vida na Terra. Alguns autores sugerem que estamos a passar pela sexta extinção do Fanerozoico, causada pela atividade humana. Desde o século XVI, a espécie humana já levou à extinção mais de 650 espécies de vertebrados. Calcula-se que cerca de um milhão de espécies possam estar em risco de extinção devido à ação do Homo sapiens. #geologia Partes do texto adaptadas de: Duarte, J.C., 2023. A timeline of Earth's history. In Green., M., Duarte, J.C., eds, A Journey Through Tides, 117-131. Elsevier Books. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-90851-1.00010-8 Fonte da imagem: Casey Horner via Unsplash O Proterozoico é o éon mais longo. Começa aos 2500 milhões de anos (Ma) e termina aos 541 Ma. É durante o Proterozoico que a Terra como hoje a conhecemos se desenvolve. Foi durante este éon que a atmosfera se tornou rica em oxigénio, que o regime atual de tectónica de placas se estabeleceu e no qual a vida multicelular emergiu. O Proterozoico é geralmente dividido em três eras: Paleoproterozoico, Mesoproterozoico e Neoproterozoico. O termo Proterozoico significa 'vida mais antiga'. Durante o Proterozoico o manto da Terra arrefeceu de modo a permitir o desenvolvimento de uma litosfera relativamente coerente. No entanto, ainda hoje é debatido quando se terão individualizado as primeiras placas tectónicas e quando se terá formado o primeiro mosaico global de placas. Como vimos antes, no Arcaico já havia algum movimento e deformação da superfície do planeta, mas provavelmente estes não seriam estáveis nem globais. A tectónica de placas terá emergido progressivamente durante o Proterozoico, ao mesmo tempo que as novas zonas de subducção se tornavam cada vez mais eficientes na reciclagem da litosfera oceânica. Placas mais rígidas implicavam uma maior flutuabilidade negativa da litosfera, uma maior coerência e uma maior eficiência na transmissão de tensões ao longo das placas, o que evitava que estas se desintegrassem ao mergulhar no manto. Por outro lado, a coerência das placas e a transmissão de tensões ao longo destas são essenciais para que a força de slab-pull, uma das principais forças motrizes da tectónica de placas, seja capaz de atuar ao longo das placas. Pensa-se que já existiria um mosaico global de placas tectónicas há ~1000 Ma, com uma tectónica de placas operacional. É também fonte de debate quando é que se terão formado os primeiros continentes. Aqui há duas perspectivas dominantes. Uma sugere que se formaram, na sua maioria, durante o Proterozoico, enquanto a outra afirma que a crusta continental já existiria em abundância no final do Arcaico. Qualquer das formas, é provável que durante o Proterozoico já existisse alguma forma de ciclos de Wilson e de ciclos de supercontinentes, marcados por episódios de fragmentação e de agregação de grandes massas continentais. O primeiro supercontinente para o qual há uma evidência sólida ter-se-á formado durante o Paleoproterozoico, há cerca de 1800 Ma. O supercontinente Nuna, também conhecido por Columbia, resultou de um evento de colisões a grande escala entre os continentes primitivos. Há fortes evidências da formação de montanhas (orogénese) resultantes destas colisões. A Nuna ter-se-á começado a fragmentar por volta dos 1400 milhões de anos. Durante o Neoproterozoico, formaram-se ainda outros dois supercontinentes, a Rodínia, há ~1000 Ma e Pannotia, há ~600 Ma. O Grande Evento de Oxigenação ocorreu no Paleoproterozoico, entre os 2400 e os 2200 Ma, e consistiu no rápido aumento de oxigénio livre na atmosfera, produzido por cianobactérias através da fotossíntese. Isto, por sua vez, levou à extinção de muitas espécies anaeróbias. Este evento deixou uma marca no registo geológico caracterizada pela ocorrência de grandes depósitos de óxidos de ferro, conhecidos por BIFs (Banded Iron Formations, ou Formações Ferríferas Bandadas, em português). Este episódio, juntamente com a emergência da tectónica de placas, terá dado origem a mudanças climáticas importantes, que envolveram o arrefecimento da atmosfera. A primeira grande glaciação da Terra terá ocorrido no início do Paleoproterozoico, há cerca de 2300 Ma. Há evidências de terem ocorrido ainda três grandes glaciações durante o Neoproterozoico. Duas dessas glaciações, conhecidas por Sturtian (~720 Ma) e Marinoan (~650 Ma), foram quase globais e poderão ter levado a Terra a entrar num estado de 'Bola de Neve'. Uma Terra Bola de Neve acontece quando a superfície da Terra se encontra quase totalmente congelada. É devido a este facto que o período da história da Terra entre os 720 e os 635 Ma é denominado de Cryogénico. O facto de, neste período, uma grande parte dos continentes se encontrarem em torno do Pólo Sul, pode ter contribuído para esta sequência de glaciações. É de notar que a Rodínia formou-se nesta zona do globo por volta dos 1100 Ma, e que grandes massas continentais aí se mantiveram até há cerca de 600 milhões de anos. Inicialmente, no Proterozoico, a vida não era muito diferente da do Arcaico, com colónias de cianobactérias e uma grande variedade de procariontes anaeróbicos. Os estromatólitos expandiram-se pelo mundo, mas entraram em declínio no final do Proterozoico. O aparecimento de seres eucariontes unicelulares e de vida multicelular coincide com o aumento de oxigénio livre na atmosfera, entre os 2100 e os 1600 Ma. As primeiras evidências de eucariontes com organelos e células complexas datam de há 1850 Ma, e há 1700 Ma já existiriam organismos multicelulares. As primeiras plantas terrestres terão colonizado as margens dos continentes há cerca de 1000 Ma. Os primeiros organismos complexos aparecem aos 635, formando a Fauna de Ediacara, que existiu até há cerca de 541 milhões de anos. Este período é denominado de Ediacárico e marca o fim do éon Proterozoico. #geologia Partes do texto adaptadas de: Duarte, J.C., 2023. A timeline of Earth's history. In Green., M., Duarte, J.C., eds, A Journey Through Tides, 117-131. Elsevier Books. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-90851-1.00010-8 Imagem: Terra no Proterozóico durante um período de glaciação. Crédito: Oleg Kuznetsov, via Wikipédia. O Arcaico corresponde ao éon que teve início há 4000 Ma e estendeu-se até aos 2500 Ma. Durante este éon, ocorreram algumas das mudanças mais fundamentais pelas quais o nosso planeta passou e sem as quais não estaríamos aqui hoje. Estas incluem a formação e o crescimento dos continentes, o surgimento de um regime tectónico (provavelmente diferente do que temos hoje), e o aparecimento da vida. O termo Arcaico significa "início" ou "origem", uma vez que o Arcaico costumava ser o primeiro éon, antes de o Hádico ter sido (recentemente) introduzido. É provável que no Hádico e no Arcaico a Terra não tivesse uma tectónica de placas como hoje a conhecemos. A compreensão dos regimes tectono-magmáticos da terra primitiva estão na ordem do dia e constituem uma das principais linhas de investigação de muitos geoscientistas. A maioria dos autores pensa que já existiria no Arcaico algum tipo de movimento da superfície do planeta, uma tectónica lenta, mas sem haver um mosaico global de placas tectónicas com fronteiras interligadas e bem definidas. Outros autores, por outro lado, argumentam que a tectónica de placas pode ter tido início no Arcaico. Estudos recentes sugerem que ocorreu uma mudança importante entre os 3800 e os 3600 Ma, que levou à formação de proto-zonas de subducção e reciclagem (pelo menos parcial) da litosfera e que, há 2500 Ma, já existiria um género de tectónica de placas. No entanto, isto ainda é disputado, e outros autores defendem que a tectónica de placas, como hoje a conhecemos, surge apenas há ~1000 Ma. O debate é complexo e está em curso, e está, em parte, relacionado com a forma como definimos “tectónica de placas” e se usamos uma definição mais ou menos restritiva (aqui também não há acordo). Existem também propostas de que a tectónica de placas poderá ter tido um início precoce e depois ter passado por um período de quiescência (o Boring Billion, ou o Mil Milhão Aborrecido em português, entre os 1800 e 800 Ma), após o qual terá recomeçado. Também há um debate acerca de qual seria, no Arcaico, a extensão (em termos de área) da crosta continental, embora seja certo que alguns fragmentos continentais tenham emergido durante este éon. Alguns autores chegam mesmo a argumentar que os primeiros "supercontinentes" podem ter-se formado durante o Arcaico: Vaalbara aos ~3600 Ma, Ur aos ~2800 Ma e Kernoland aos ~2700 Ma. Pensa-se que no Arcaico os continentes representavam menos de 15% da superfície do planeta, em comparação com os 30% atuais. Nesta fase da história da Terra, as marés oceânicas eram também muito mais energéticas devido à proximidade da jovem Lua. Podemos apenas especular acerca de como seria o clima da Terra no Arcaico, mas provavelmente seria irreconhecível. A temperatura média à superfície seria bem mais quente, em torno dos 40 °C (hoje é cerca de 15 ºC), e havia muito pouco oxigénio livre. Isso significa que não havia ainda uma camada de ozono, e a superfície do planeta estaria fortemente exposta à radiação UV. Isto poderia, em parte, ser contrariado pelos elevados níveis de enxofre na atmosfera, que poderiam absorver parte da radiação UV, mas ainda assim, a superfície da Terra seria essencialmente inóspita. No Arcaico já existia vida nos oceanos. Porém, é incerto quando exatamente esta terá surgido. Existem algumas evidências de que pode ter sido no Hádico, há cerca de 4100 Ma. Estas evidências baseiam-se no facto de se ter encontrado carbono, potencialmente biogénico, em zircões desta idade. No entanto, só há evidências fortes da existência de vida por volta dos 3700 Ma: grafite biogénica encontrada em sedimentos metamorfizados na Gronelândia Ocidental. Os fósseis mais antigos resultam da fossilização de mantos microbianos constituídos por bactérias e rochas cimentadas, os estromatólitos, encontrados na Austrália com uma idade de 3480 Ma (é de notar que ainda hoje existem estromatólitos!). O desenvolvimento da fotossíntese dá-se por volta dos 3500 Ma e os primeiros organismos terrestres podem ter-se desenvolvido por volta dos 3200 Ma. Também não se sabe onde a vida surgiu. Algumas teorias sugerem que a vida pode ter surgido associada a fontes hidrotermais, nos fundos oceânicos do Hádico ou do Arcaico, alimentadas por produtos químicos e calor proveniente do interior da Terra, ou em pequenas fendas nas rochas formadas por vulcanismo e/ou impactos de meteoritos, que as protegeriam de um ambiente essencialmente hostil. Outras hipóteses propõem que a vida pode ter-se desenvolvido nas margens dos continentes, associada a zonas de maré que permitiria que os elementos químicos presentes na água do mar fossem misturados pela ação das ondas (repetidamente concentrados e diluídos), promovendo as reações químicas necessárias ao aparecimento da vida. Porém, a vida no Arcaico estava limitada a organismos unicelulares (procariontes) e incluía principalmente bactérias e outros organismos do domínio Archaea. É ainda de notar que as cianobactérias que viveram durante o Arcaico foram essenciais para a criação de uma atmosfera oxigenada característica dos éons seguintes, o Proterozoico e o Fanerozoico. #geologia Partes do texto adaptadas de: Duarte, J.C., 2023. A timeline of Earth's history. In Green., M., Duarte, J.C., eds, A Journey Through Tides, 117-131. Elsevier Books. https://doi.org/10.1016/B978-0-323-90851-1.00010-8 Imagem: Como seria Terra no Arcaico. Fonte: NASA/Goddard Space Flight Center/Francis Reddy 1 de novembro de 2023. Faz hoje 268 anos que se deu um dos sismos com maior impacto na História. O sismo de Lisboa de 1755 ocorreu no dia de Todos-os-Santos, por volta da 9:40 da manhã quando parte da população se encontrava a assistir à missa no interior de igrejas. Muito dos tetos ruíram. A mistura de velas e interiores de madeira deram origem a fogos que duraram dias. Aqueles que conseguiram escapar, fugiram para a parte aberta da cidade, junto ao rio. Quarenta minutos depois do primeiro tremor, uma onda gigante subiu o Tejo e inundou a parte baixa da cidade. O sismo terá tido uma magnitude superior a 8,5. As estimativas variam, mas terão morrido dezenas de milhares de pessoas. A destruição instantânea de uma capital europeia deu origem a uma onda de choque que alastrou pelo mundo ocidental. Os filósofos da altura, ao estudarem as causas dos sismos, abriram caminho para aquilo que hoje chamamos sismologia. Há até quem considere que foi aqui que teve início as ciências da Terra como disciplina científica. Terá sido 1755 um evento único? Qual a sua explicação? Se olharmos para o mapa (Hensen et al., 2019), vemos que só no século XX ocorreram, entre Portugal continental e os Açores, três sismos de magnitude perto ou superior a 8 (1941, 1969 e 1979). O primeiro teve mesmo uma magnitude de 8,4. No entanto, há quem considere que o maior perigo poderá não vir do mar, mas sim do interior do território continental, na zona do Vale do Tejo. Em 1531, ocorreu aqui um sismo de magnitude estimada de ~6.5, que terá tido uma intensidade máxima de X em Benavente (ver figura Miranda et al. 2012). Em 1909, um sismo de magnitude 6,0, na mesma zona, terá causado cerca de 70 vítimas. O chamado sismo de Benavente, atingiu uma intensidade de X, a mesma registada em Lisboa durante o sismo de 1755, mas num raio muito mais pequeno. Hoje, um sismo de magnitude 6,5 junto a Lisboa poderia ser catastrófico. Com estes exemplos, quero chamar a atenção para o facto de só nos últimos 100 anos terem ocorrido 3 sismos de magnitude perto de 8 ao largo da costa portuguesa, 2 sismos de magnitude 7,1 e um sismo em terra com magnitude 6. A ideia de que os sismos grandes só acontecem a cada 200 anos é um mito urbano. A dura realidade é que sismos de magnitude 6 a 8 ocorrem várias vezes por século e podem ocorrer a qualquer momento. O problema é que a nossa memória é curta. (ver imagem Custódio et al., 2015) E, porque há sismicidade? Portugal encontra-se numa zona de fronteira entre duas grandes placas tectónicas: a África e a Eurásia. Estas placas estão em rota convergente, o que leva à acumulação de tensão que é ciclicamente libertada sob a forma de grandes sismos. Estes causam a deformação da crusta, e é assim que as nossas montanhas vão sendo construídas, pouco a pouco. No entanto, ainda hoje se desconhecem as falhas que terão causado os sismos de 1755 e de 1969. Estas localizam-se a grandes profundidades no interior da litosfera. Por exemplo, o sismo de 1969 terá ocorrido a cerca de 30 km de profundidade. Nesta zona, a profundidade do mar é de cerca de 5 quilómetros, o que torna o seu estudo bastante complicado. Estudos recentes, mostraram também que a nossa margem poderá estar a ser reativada e a transformar-se numa margem ativa, o que explicaria a sismicidade de grande magnitude, da mesma ordem de grandeza da que se observa no famoso Anel de Fogo do Pacífico (ver imagem, Stern et al., 2016). Dada a perigosidade sísmica a que estamos expostos, e o seu desconhecimento, será preciso fazer muitos mais estudos, quer no mar, quer em terra (a falha do Vale do Tejo também é relativamente desconhecida). Alguma coisa tem sido feita, mas não chega. Neste momento o IPMA tem um sistema de alerta de tsunamis operacional e vão ser instalados sensores sísmicos na nova geração de cabos submarinos, que atravessam a fronteira de placas em dois sítios. Também há muito por fazer no que toca a construção sismo-resistente e à sua fiscalização. Não nos devemos alarmar, mas nunca é demais recordar que em 1755 ocorreu ao largo de Portugal um dos maiores sismos da história e que este não foi um evento único. #geologia Referências: Hensen et al., (2019): https://doi.org/10.3389/feart.2019.00039 Miranda et al. (2012): https://www.iitk.ac.in/nicee/wcee/article/WCEE2012_0685.pdf Custódio et al. (2015): https://doi.org/10.1093/gji/ggv285 Stern et al. (2016): https://agupubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9781119054146.ch4 |